JOÃO, O SUJEITO BIOPSICOSSOCIAL
ESPECIALIZANDA: RAQUEL TIEZZI FERNANDES
ORIENTADORA: DANIELE VIEIRA DANTAS
Ao entrar na equipe, encontrei como desafio o registro de pacientes dos grupos prioritários solicitados pelo Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), como o de pacientes em uso contínuo de medicamentos de controle especial. Apesar de existirem cadernos com a finalidade, estes se encontravam desatualizados, assim como o cadastramento de pacientes das micro-áreas. Ressalta-se que duas micro-áreas estão sem cobertura de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e mesmo as que tem cobertura de ACS há falta de informações.
Em reunião de equipe propus o início do registro dos pacientes de saúde mental em uso de medicamentos controlados em fichas individuais com as principais informações sobre o paciente, dados pessoais e de contato, medicamentos em uso, últimas consultas no setor especializado e multidisciplinar (psiquiatria, psicologia e Centro de Atenção Psicossocial-CAPS) e na Unidade Básica de Saúde (UBS), risco e vulnerabilidade. A equipe aceitou esse cadastramento feito por mim durante as consultas e espero que sirva de motivação para que também façam essa busca ativa de dados e participem desse processo trazendo as informações conseguidas nos cadastramentos das famílias.
Dentre os pacientes registrados nas fichas de medicamentos controlados está um paciente que nesse relato chamarei pelo pseudônimo de João. João buscava com frequência atendimento na UBS com queixa de tosse, dispneia e a crença de ter tuberculose. Inúmeros testes de baciloscopia direta em escarro negativos e consultas especializadas em pneumologia com o diagnóstico de enfisema pulmonar não eram suficientes para afastar o medo de estar com tuberculose e de morrer com essa doença assim como seus pais que acreditava terem morrido com tuberculose.
Seguindo a proposta de clínica ampliada, percebi que João não estava apenas doente dos seus pulmões. A forma como interpretava e lidava com a doença e o medo demonstrava que João também precisava de cuidado da mente, já que isso o afetava mais que a dispneia ou o escarro da exacerbação da doença pulmonar.
Uma postura de acolhimento foi traçada, João era atendido e orientado nas inúmeras vezes que aparecia na unidade, mesmo sem agendamento. E João aparecia muitas vezes. Em um primeiro instante essa frequência com que João recorria ao serviço poderia gerar impaciência na equipe, mas, enxergando João como sujeito biopsicossocial, percebíamos um homem sozinho, desde que seus pais faleceram e que a família o rejeitou por seu vício em álcool e drogas e comportamento inadequado.
Encaminhei João para consulta com psiquiatria via Sistema de Regulação (SISREG), essa consulta nunca foi agendada, talvez pela enorme demanda no município de Natal e pela baixa oferta de consultas com especialistas ofertadas no sistema. Enquanto fazia acompanhamento com pneumologista, comigo na UBS e aguardava a consulta com atendimento especializado psiquiátrico, João tentou suicídio. Não conseguiu, tentou novamente, sobreviveu. E, depois disso, buscou atendimento na Unidade contando que tinha medo da doença e de morrer, mas que o fardo fora tão grande, que João colocou o medo de lado para tentar um fim ao seu sofrimento mental e solidão.
A assistência ainda não estava adequada. Encaminhei João para o CAPS, com carta explicando toda a situação. Ele foi atendido e passou a fazer acompanhamento semanalmente em grupos de terapia e em consultas mensais com psiquiatra. Teve o diagnóstico de transtorno bipolar e iniciou o uso de carbolítium 300mg.
João nunca deixou de ir à UBS. Além do acompanhamento, precisava da transcrição de laudos dos especialistas para conseguir algum auxílio financeiro para se manter, já que suas doenças pulmonares e da mente o impossibilitavam de trabalhar naquele momento e não possuía nenhuma fonte de renda. Recorria à ACS por celular quando se sentia sozinho ou com medo de algumas alucinações, ingerindo durante uma delas inúmeros comprimidos de carbolitium de uma vez.
Em uma de suas últimas visitas à UBS, João se queixava de tosse, já tinha ido à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) fazer exames, mas queria mais exames, queria mais antibióticos. Comentou que em consulta com psiquiatria no CAPS exigiam a presença de um acompanhante e estava preocupado pois não sabia se conseguiria um acompanhante. Além disso, queixou-se de azia e, ao receber a receita de omeprazol com a orientação de tomar um comprimido trinta minutos antes do desjejum, respondeu “mas doutora, eu não tomo café da manhã, não tenho dinheiro para comprar comida, as vezes almoço na casa de algum conhecido, mas não dá para ficar indo lá todo dia, né”. Perguntei para João sobre a possibilidade de ir em um restaurante popular que abriu no bairro de Felipe Camarão no último mês, mas, segundo ele, nesse restaurante também precisava ter dinheiro (1 real a refeição) e nem isso ele tinha. Às vezes ele bebia pela solidão, às vezes porque melhorava a fome.
Após essa consulta e esses relatos, convoquei a equipe novamente, alguma ação seria necessária no sentido de ajudar esse homem sozinho e sem condições até mesmo de se alimentar. Decidimos recorrer ao Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), onde uma ACS e eu fomos pessoalmente para conhecer o local, os serviços que poderiam oferecer à população e passar o caso de João. João já era conhecido pelo CRAS e estava sendo acompanhado por lá. Em 6 meses havia conseguido 3 cestas básicas. Mas teria esse homem sozinho e doente condições de cozinhar e de se manter com essas cestas básicas? Já era alguma coisa, mas essas cestas básicas tardavam meses para serem aprovadas e estavam chegando à quantidade máxima que poderiam ser oferecidas. No entanto, apesar dos desafios pactuou-se que o caso seria estudado e novas estratégias seriam traçadas. Também foi pactuado um maior vínculo entre a nossa equipe e o CRAS, assim como orientações gerais também sobre o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS).
O próximo passo será encaminhar João para o CAPS Álcool e Drogas (AD), para que também tenha assistência em sua dependência ao álcool e para que, ao passar o dia ali, consiga se alimentar gratuitamente. Seguiremos acompanhando João, assim como muitos outros em situação similar a João que apareçam na nossa unidade.
Além desses serviços, estreitaremos laços e lutaremos por uma atuação mais presente do Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF) em nossa unidade e utilizaremos do Apoio Matricial que iniciou nesse mês na UBS oriundo de um projeto de psiquiatria do Hospital Universitário Onofre Lopes. Eu e toda a equipe aprendemos com o caso relatado, conhecemos melhor os dispositivos da rede de atenção e assistência em Natal e continuaremos o aprendizado, para ajudarmos ao máximo e da forma mais adequada a cada indivíduo.
Ponto(s)