10 de julho de 2018 / SEM COMENTÁRIOS / CATEGORIA: Relatos

CAPÍTULO II: Caracterização da demanda espontânea e programada e o desafio de lidar com uma procura maior que a oferta

 

 

            A Unidade Básica de Saúde (UBS) em que trabalho está situada na cidade de Macau, estado do Rio Grande do Norte. Segundo dados do último censo, a população da cidade é de 29.446 habitantes, dos quais 8% têm menos de 5 anos, 25% têm entre 5 e 20 anos, 56% têm entre 20 e 59 anos e 11% têm mais de 60 anos. Conforme dados do DATASUS o coeficiente de mortalidade geral em 2016 foi de 7/1000 habitantes. As principais causas de óbito nesse período foram as doenças cardiovasculares (28%), neoplásicas (14%), endócrinas (11%), seguido das causas externas (9%).

 

 

 Nossa UBS está situada no centro da cidade de Macau. A área abrange cerca de 7 mil pessoas, o que representa 23% da população da cidade. O perfil demográfico e epidemiológico se assemelha ao apresentado para a cidade como um todo, prevalecendo o grupo de adultos entre 20 e 59 anos, cujo perfil de morbidade compreende basicamente as doenças crônicas como Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) e Diabetes Mellitus (DM) – ambas fatores de risco importantes para as doenças cardiovasculares (a principal causa de óbito no município).

A organização da demanda é essencial para a efetivação de um bom trabalho na ESF, principalmente quando a procura por atendimento suplanta a capacidade de resolução da equipe. É necessário oferecer um cuidado longitudinal aos grupos prioritários (gestantes, menores de 2 anos, portadores de doenças crônicas) mas, também, precisa responder de forma oportuna aos eventos agudos que motivam à procura pela UBS. Conciliar as demandas programada e espontânea é um dos nossos maiores desafios.

Na nossa unidade, infelizmente, não trabalhamos com acolhimento e acesso avançado. Os usuários são agendados através de um sistema de fichas, distribuídas uma vez na semana. São agendados 10 usuários por turno de trabalho e reservado cerca de 4 vagas para o atendimento de “urgências”. Para o agendamento, são priorizados os portadores de doenças crônicas, como HAS, DM e transtornos mentais, gestantes e menores de 2 anos. Não raramente é possível encontrar a agenda com as 14 vagas do turno já preenchidas, dificultando o acesso dos indivíduos que precisam de um atendimento no dia devido a uma queixa aguda. Isso acaba sobrecarregando os profissionais, particularmente o médico, já que além de atender os usuários agendados, também precisa assistir à demanda espontânea, colocada como “urgente”, não prevista para aquele dia.            

Como abordei no capítulo anterior, a minha equipe tem certa resistência em modificar a forma de trabalho, pois desejam manter o funcionamento e organização da UBS como já ocorre há anos. No entanto, esse modelo de trabalho esbarra em frustração dos profissionais que prestam o atendimento clínico (médico, enfermeiro, dentista) pela sobrecarga de trabalho e também gera descontentamento da população que procura a UBS como demanda não programática.São muitas as razões de procura por atendimento clínico na nossa UBS. Na tabela abaixo são apontados os principais motivos de consulta médica no mês de abril de 2018, baseado na análise dos prontuários. Foram realizadas 200 consultas, das quais 80% representaram demanda programada e 20% demanda espontânea.

 

 

Motivo

Quantidade absoluta

%

Demanda programada

160

80%

HAS

40

20%

DM

33

16%

Saúde mental

30

15%

Pré-Natal

23

11%

Puericultura

20

10%

Renovação de Receitas

14

8%

 

 

Motivo

Quantidade absoluta

%

Demanda espontânea

40

20%

Renovação de Receitas

20

10%

IVAS

8

4%

Lombalgia

5

2.5%

Diarreia

5

2.5%

Cefaleia

2

1%

 

 

 

 

 

 

 

Pode-se observar pelos dados apresentados que a assistência provida por nossa UBS se concentra, principalmente, na demanda programática. Esse fato reflete a necessidade de garantir atenção aos agravos mais comuns na população, como as doenças crônicas e psiquiátricas. O foco em HAS e DM deve ser prioritário, haja visto que a principal causa de mortalidade na cidade de Macau é representada pelas doenças cardiovasculares.

A demanda programática tem implicação direta com o conceito de longitudinalidade do cuidado – um dos princípios da Atenção Primária à Saúde (APS) – uma vez que, ao reservar vagas para um determinado grupo, temos a garantia do retorno para o cuidado continuado, propiciando um monitoramento mais adequado da comorbidade e intervenção mais efetiva. Para Oliveira (2013) a longitudinalidade tende a produzir diagnósticos e tratamentos mais precisos, reduzindo encaminhamentos e procedimentos de maior complexidade desnecessários. 

Podemos observar também que a demanda espontânea é preenchida predominantemente por condição não emergencial: 50% do atendimento desta demanda objetivou a renovação de receitas. Portanto, algo que poderia ter sido realizado por agendamento, sem prejuízo ao usuário.

Historicamente os usuários da UBS não consideram a chamada “renovação de receita” como uma consulta, pois em outros tempos, os indivíduos que procuravam a unidade com tal demanda eram direcionados à enfermeira que então transcrevia a receita e o médico apenas carimbava. Uma conduta, no mínimo, perigosa! Como garantir a efetividade do tratamento sem uma avaliação clínica regular do indivíduo? Como identificar possíveis efeitos adversos sem consultá-lo? Como superar a dependência de psicotrópicos (em especial, os benzodiazepínicos) sem vê-lo? Carimbar uma receita já preenchida facilita o fluxo do atendimento, desafoga o trabalho do médico e aumenta o número de vagas disponíveis para consulta, criando uma falsa ideia de ampliação do acesso. Essa postura, além de contrariar o Código de Ética Médica, pode trazer riscos irreparáveis à saúde do usuário. Convencer a equipe, e principalmente a população, de que essa conduta não é adequada foi um grande desafio e ainda gera muitas reclamações.

Uma alternativa para superar o problema da inadequação da demanda espontânea seria investir em educação comunitária. O usuário precisa compreender que as vagas reservadas para essa demanda devem obedecer a critérios de classificação de risco, de preferência guiados por protocolos, a exemplo do Sistema de Triagem de Manchester. Segundo Mendes (2012) a aplicação do sistema Manchester nas unidades de APS trouxe resultados positivos na redução das filas de espera para o atendimento, com boa aceitação da população.

A assistência da nossa UBS também é comprometida pelo número excessivo de usuários da área adscrita. Diante de uma população de mais de 7 mil pessoas é humanamente impossível prover atendimento a todos. Vale ressaltar que, segundo a nova Política Nacional de Atenção Básica (2017), o número recomendado de indivíduos sob responsabilidade de uma equipe é de 2000 a 3500 pessoas. Como garantir a execução dos princípios da APS trabalhando com o dobro de usuários recomendado? Como garantir a longitudinalidade do cuidado a todos os grupos prioritários? Como responder de forma efetiva aos eventos agudos que surgem diariamente? Para uma boa assistência precisamos, acima de tudo, ter recursos físicos e humanos em quantidades suficientes.

É necessário um equilíbrio entre as demandas espontânea e programada. Um modelo que privilegie a demanda espontânea e as condições agudas compromete o acompanhamento longitudinal do usuário portador de doença crônica, por exemplo, prejudicando a resposta social de redução da mortalidade cardiovascular. Sempre haverá demanda espontânea para condições agudas em decorrência de comorbidade crônica mal controlada que tenderá a agudizar ou mesmo pelo surgimento de doença aguda não prevista. Resolver uma determinada urgência menor na UBS evita a sobrecarga da rede hospitalar, reduzindo as longas filas do pronto-atendimento que dificultam a atenção às urgências maiores (MENDES, 2012).

Conclui-se que a classificação do risco individual parece ser a melhor alternativa para assegurar o atendimento oportuno a quem mais precisa diante de um quadro agudo e ordenar o fluxo com agendamento para os casos que não determinam urgência naquele momento. Além disso, deve-se prover a assistência programática, com priorização dos grupos de maior vulnerabilidade, para garantir a longitudinalidade do cuidado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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