27 de novembro de 2018 / SEM COMENTÁRIOS / CATEGORIA: Relatos

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

TÍTULO: SISTEMATIZAÇÃO DO ACOMPANHAMENTO EM SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA

ESPECIALIZANDO: SORAIA LEMOS EHLERS

ORIENTADOR: RICARDO HENRIQUE VIEIRA DE MELO

 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu, em 1958, a saúde como completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente como ausência de doença.

Muito embora não haja uma definição oficial para o termo, pode-se dizer que “Saúde Mental” (ou sanidade mental) é uma expressão usada para descrever um determinado nível de qualidade cognitiva ou emocional, ou a ausência de patologia mental propriamente dita.

Segundo Dalgalarrondo (2000), há vários critérios de normalidade e anormalidade em psicopatologia. Há a normalidade como ausência de doença. Normal, do ponto de vista psicopatológico, seria, portanto, a ausência de um transtorno mental definido. Há a normalidade estatística, em que normal passa a ser aquilo que se observa com mais frequência. Há, ainda, a normalidade funcional, em que o conceito de patológico estaria relacionado ao que é disfuncional, àquilo que provoca sofrimento para o próprio indivíduo ou para o seu grupo social. Há, também, a normalidade subjetiva, em que a ênfase está na percepção subjetiva do próprio indivíduo em relação ao seu próprio estado de saúde, às suas vivências subjetivas.

Trata-se de conceitos vastos e imprecisos, uma vez que bem-estar é algo difícil de se definir objetivamente. Entretanto, entende-se como certo que todas as pessoas podem apresentar sinais de sofrimento psíquico em alguma fase da vida.

Dentro desse contexto, a presente proposta de intervenção consiste em elaborar de uma planilha de acompanhamento em Saúde Mental para os pacientes de nossa área de adstrição.

A experiência da confecção de uma planilha para esquematização do acompanhamento dos pacientes portadores de transtornos da esfera psíquica não foi algo, digamos assim, inusitado. Já contávamos com material similar em nossa Unidade, a ser preenchido e constantemente atualizado por nossos agentes comunitários de saúde.

Porém, ao pesquisar sobre tais fichas, percebi que elas não estavam sendo atualizadas desde antes mesmo de eu iniciar minhas atividades profissionais naquele município, por volta de dois anos atrás. Faltavam as planilhas de quatro dos nossos agentes, e havia a planilha de uma agente comunitária que já havia sido transferida para outra área, há mais de três anos. E mesmo aquelas planilhas que estavam na pasta de Acompanhamento Mental e Neurológico estavam pobremente preenchidas, não condizentes com a realidade verificada em nossa rotina diária de atendimento.

Assim sendo, aproveitei a oportunidade para nos reinventarmos nesse tema, enquanto equipe. Aperfeiçoei a planilha já existente, incluindo alguns itens que considerei importantes, e conversei com cada ACS, individualmente, solicitando o preenchimento de tais fichas, ressaltando a importância das mesmas em nossa próxima avaliação do PMAQ, e para um melhor controle do tratamento desses usuários, que não são poucos, em nossa área.

Também eu me propus a manter sempre à minha própria disposição algumas fichas, para preenchimento durante os atendimentos ambulatoriais, e entreguei algumas à enfermeira da equipe, para que auxiliasse, quando possível.

Achei pertinente criar, também, uma planilha para programação dos retornos desses pacientes, a ser preenchida, inicialmente, por mim, durante o atendimento desse público específico. O objetivo seria criar um histórico de acompanhamento, para poder observar a assiduidade dos pacientes. Pacientes faltosos a uma primeira consulta agendada teriam, inicialmente, um reagendamento programado, sendo a nova data de atendimento informada ao usuário pelo ACS. A partir de uma segunda ausência, programaríamos uma visita domiciliar para avaliar a situação.

Tal procedimento teria como foco o auxílio aos nossos pacientes, uma vez que sabemos que patologias há em que o paciente perde a autonomia de responder por si; outros podem experimentar apatia e despersonalização que limite sua própria iniciativa de autocuidado. Uma descontinuidade de acompanhamento poderia nos sinalizar uma piora do quadro clínico, e a nossa proposição seria a de uma busca ativa de tais casos, considerando as peculiaridades do terreno das psicopatologias.

Tal tarefa não foi recebida pelos nossos ACS de forma tão amistosa, por assim dizer, uma vez que passaram a contar com uma tarefa a mais. Entretanto, temos um excelente relacionamento em equipe e todos compreenderam a importância desse trabalho no contexto da nossa comunidade.

Cabe ressaltar que não dispomos de CAPS em nosso município. A unidade mais próxima fica no município de Maruim, que faz fronteira com Rosário do Catete. Apenas dois de nossos pacientes fazem acompanhamento em tal unidade. Não temos uma rotina de referenciar pacientes para aquela unidade.

Temos, por outro lado, à nossa disposição, um psiquiatra, vinculado à rede municipal, que atende às segundas-feiras pela manhã. Temos, também, um psicólogo à disposição em nossa própria UBS, Marcos, todas as quintas-feiras, em período matutino.

Com relação ao NASF do município, esteve inativo até mais ou menos duas semanas atrás, quando se apresentaram as três primeiras profissionais convocadas, dentre elas uma assistente social, uma nutricionista e uma psicóloga. Ainda estão em fase de organização de horários, mas, por ora, sabemos que teremos mais uma profissional para atuar na área da saúde mental.

Importante também mencionar que dispomos, em nosso município, de vasta gama de medicações psicotrópicas, dentre antidepressivos, ansiolíticos, anticonvulsivantes, etc., embora, eventualmente, falte uma ou outra medicação de uso mais frequente no estoque do município.

Traremos, a seguir, um caso clínico de nossa comunidade, que vimos acompanhando de forma bastante próxima nos últimos meses:

V.S., 48 anos, viúva, sexo feminino, parda, hipertensa, prendas do lar.  Teve quatro filhos homens, tem 3 netos. Mora com um filho e uma nora. A família tem envolvimento com o narcotráfico local. Há aproximadamente quatro anos, seu filho mais velho foi assassinado, por rixa entre traficantes rivais. Após tal evento, V.S. apresentou quadro de depressão severa, segundo registro em prontuário, tendo feito uso de antidepressivo tricíclico durante uns dois anos (Amitriptilina 25mg/dia).  Possivelmente após melhora clínica, abandonou o tratamento, por conta própria, rareando suas idas à UBS, que se limitavam a renovar suas prescrições de anti-hipertensivos em uso (Losartana 50mg via oral 12/12h e Hidroclorotiazida 25mg VO pela manhã).

Há mais ou menos três meses, outro de seus filhos foi assassinado, em uma festa ocorrida na cidade vizinha, e essa paciente nos procurou na UBS em péssimo estado, extremamente ansiosa, em prantos, insone. Contou-nos que, de todos os filhos, esse era o único que era estudioso e não fazia “coisas erradas”. Deixou companheira de 18 anos de idade viúva e uma filha de um ano de idade. A paciente estava inconsolável, não dormia havia 3 dias, segundo a mesma. Informou-nos que toda a sua família estava “jurada de morte”, por uma questão de vingança, e que fazia muito tempo que não tinha tranquilidade na vida. Queixou-se, também, de dificuldades financeiras, informando que passava roupas em uma residência, uma vez por semana, e recebia R$40,00 por dia trabalhado. Informou que, quando ficava nervosa, pegava um comprimido de Diazepam “emprestado” da comadre.

Então prescrevi para a mesma, naquele momento, Clonazepam 2mg via oral às 21h e Fluoxetina 20mg via oral pela manhã. Encaminhei-a para o psicólogo Marcos, que a atenderia no dia seguinte, na própria UBS, e também para o psiquiatra, cuja consulta aconteceria dali a oito dias, na clínica integrada, em frente ao Pronto-Socorro Municipal (tivemos o cuidado de telefonar e agendar, por se tratar de caso mais urgente). Agendei seu retorno para meu ambulatório em 15 dias.

No dia seguinte, a paciente não compareceu para o atendimento com o psicólogo na UBS. Na semana seguinte, não foi ao psiquiatra.

Indaguei à ACS da área, sobre a paciente, que nos informou que a família estava passando alguns dias em outro município, com parentes, receosos de novo ataque.

Na data do retorno, a paciente não compareceu, igualmente. Reagendamos seu retorno para dali a 30 dias, considerando que a mesma não se encontrava na cidade.

Mas o inesperado aconteceu. Aproximadamente um mês após evento tão trágico, outro filho da paciente foi assassinado.

A Sra. V.S. retornou à cidade. Encontro-a novamente em prantos na UBS. P.A. = 200x120mmHg. Informa-me o ocorrido. Informa que fez uso das medicações prescritas anteriormente de forma irregular. Interrompeu o uso da Fluoxetina após 5 dias de uso e manteve o Clonazepam, que havia acabado antes do tempo previsto, por se automedicar excessivamente e por oferecê-lo também a sua nora, que estava com dificuldades em relação ao sono.

Sem muita perda de tempo, encaminhamos a paciente ao Pronto-Socorro da cidade, em virtude da urgência hipertensiva e do quadro emocional. Acionamos a recepção do P.S., que prontamente nos enviou uma ambulância, e a paciente, após alguma resistência, concordou em ir.

No dia seguinte, manhã de atendimento domiciliar, segundo o cronograma da Unidade, fomos à residência da paciente. Algo apática, informou-nos que tomou remédio para a pressão e Diazepam no P.S.

Após longa conversa, a paciente concordou em se submeter aos tratamentos previamente propostos, e concordou em usar as medicações nos horários acordados, sem compartilhá-las com mais ninguém. Comprometeu-se a retornar à UBS dali a 30 dias, mas resistiu à ideia de ir ao psiquiatra e não prometeu ir ao psicólogo.

A paciente não retornou após os 30 dias. Segundo a ACS, a Sra. V.S. havia voltado a vender drogas e estava tendo problemas com o delegado da cidade, porque a polícia havia encontrado um bandido e alguma quantidade de maconha escondidos em sua residência.

Faz algo em torno de três semanas, a Sra. V.S. apareceu extremamente nervosa na UBS, dizendo precisar de algo para se acalmar. Oferecemos à mesma 05 gotas de Clonazepam, de que dispúnhamos na unidade de saúde. Antes que a pudesse reavaliar, ela se foi. Sua nora permaneceu no local, e me disse que a sogra estava nervosa porque teria audiência com o delegado naquela tarde. Conversamos bastante, e expressamos, ambas, nossas preocupações em relação à paciente. Sua nora, então, comprometeu-se a administrar as medicações à Sra. V.S., diariamente (moram no mesmo domicílio). Comprometemo-nos a realizar visita domiciliar em 30 dias.

Segundo a nora, que esteve na UBS há uma semana, mais ou menos, a paciente está em uso regular das medicações prescritas, dorme melhor e já não apresenta mais as costumeiras crises de ansiedade. E esta é a atual situação de nossa paciente. Caso de difícil manejo, porém desafiador, que nos deixou, por algumas vezes, impotentes diante de suas idiossincrasias.

Referências:

DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e Semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: Editora Artmed, p.25-27, 2000.

 

Apêndice: planilhas criadas e propostas para uso:

 

Planilha

 

 

 

Nº PRONT

NOME

ACS

D.N.

PRÓXIMA CONSULTA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 Star2 Stars3 Stars4 Stars5 Stars (No Ratings Yet)
Loading...
Ponto(s)