O processo de desinstitucionalização psiquiátrica, implementada no Brasil a partir da década de 90, vem mudando o perfil de atenção à saúde mental. A ênfase no tratamento extra-hospitalar e a inclusão da saúde mental nas ações gerais de saúde induzem a estruturação de redes de serviços de atenção à saúde mental, integradas ao Sistema Único de Saúde (SUS) (POÇO E AMARAL, 2005).
O Centro de Atenção Psicossocial (CAPES), é um serviço estratégico para promover a desospitalização, aqui entendida enquanto ofertas de serviços territoriais, compatíveis com os princípios da reforma Psiquiátrica e com as diretrizes da Política nacional de Saúde Mental. Porém, os CAPES e a oferta de serviços na abordagem psicossocial não são suficientes para a cobertura da demanda de Saúde Mental nas diversas realidades do país (CORREIA et all, 2011).
O desafio que vem sendo enfrentado pelos profissionais na atenção básica é a articulação entre a atenção básica e a saúde mental. Pois, a atenção básica através da ESF vem sendo postulada como o campo de práticas e produção de novos modos de cuidado em saúde mental, sendo exigido dessas melhorias a assistência e ampliação do acesso (MOLINER E LOPES, 2013).
Nossa equipe, encontrava-se sem médico há mais de um ano e a partir do início de janeiro/2018 realizei atendimento de apenas dois pacientes com queixas de sofrimento psíquico. Quando questionei a respeito dos usuários cadastrados do nosso território, obtive como resposta que eles não estavam cadastrados em nosso território porque eram atendidos pelos CAPS ou direto com o Psiquiatra no Hospital de Especialidades. Então, em nossa primeira reunião a respeito de saúde mental demos inicio a elaboração de uma planilha para que possamos registrar as informações solicitadas pelo PMAQ. Conversamos também sobre a necessidade de termos cadastrados todos os usuários que se enquadrem dentro do perfil de sofrimento psíquico, que estejam dentro do nosso território, e mesmo que no momento ainda não estejam sendo atendidos pela nossa equipe em razão do não estabelecimento de uma linha de cuidado, precisamos saber onde estas pessoas se encontram e o que está acontecendo com elas do ponto de vista clínico. Onde, como e por quem estão sendo atendidas. Como segundo passo, agendaremos visitas domiciliares a estes usuários e realizaremos os cadastros na própria residência do usuário.
Como em nossa UBS estão estabelecidas 3 (três) equipes de ESF, reuni individualmente com os médicos que compõe as outras duas equipes e fui informada que atualmente não existe nenhuma linha de cuidado para o portador de sofrimento psíquico. No momento é realizado apenas o primeiro atendimento com o médico da UBS e o paciente mais grave encaminhado ao hospital de especialidades para o psiquiatra sem vínculo por parte da equipe da atenção básica no acompanhamento clínico do paciente com sofrimento psíquico.
Como exemplo de um caso escolhi a usuária E. M. B. G, que procurou atendimento com queixa inicial de sinusite intermitente há mais ou menos 2 anos e dor nos membros inferiores há 6 meses e aparecimento de ecmoses intermitentes em diversas partes do corpo. Referiu ainda, cefaléia com choro constante (episódio que também ocorreu durante a consulta) e intensa irritabilidade com seus filhos (03 e 12 anos). A consulta foi realizada inicialmente com a presença do seu esposo que interviu positivamente algumas vezes demonstrando preocupação e carinho pela esposa. Informou em concordância com o marido, que os sintomas iniciaram a partir do nascimento de seu filho mais novo, atualmente com três anos. Há mais ou menos um ano foi atendida no CAPS III através de encaminhamento, sendo avaliada por dois psiquiatras que constataram que a mesma não era portadora de transtorno mental grave e que deveria ser atendida pela UBS de seu território. No decorrer da consulta foi solicitado ao esposo que esperasse um pouco fora do consultório e foi perguntado à paciente se ela já tinha sentido vontade de se matar, ela respondeu que sim, mas, que isso aconteceu logo no início dos sintomas. Foi perguntado ainda se ela chegou a pensar como faria e a mesma respondeu que não. Foram realizados exames de rotina, incluindo exames hormonais, com resultados todos normais. Em seguida, foi prescrito um antidepressivo, encaminhada ao psicólogo da UBS e psiquiatra do Hospital de Especialidades. Foi agendado retorno com 15 dias com a observação que este retorno poderia ser mais breve em caso de necessidade. Após 36 dias, seu marido compareceu à ESF referindo que houve um problema familiar e sua esposa não estava bem e que o medicamento havia terminado. No mesmo momento foi orientado que retornasse à sua residência e comparecer com a paciente imediatamente à UBS, o que aconteceu no mesmo dia e mesmo turno de trabalho. Desta forma, a segunda consulta foi realizada em caráter de urgência. A paciente retornou acompanhada de seu marido em estado extremamente angustiado sem nenhum cuidado com a aparência referindo ainda que após uma semana do início do medicamento sentiu-se melhor, mais alegre e com vontade de cuidar de sua casa e de seus filhos, porém, quando seu filho de 12 anos teve que se submeter à uma apendicectomia de urgência, não percebeu que o medicamento havia terminado sendo suspenso por seis dias e não poderia comprá-lo sem nova receita. Após atendimento e explicações sobre o motivo pelo qual parou de fazer uso do medicamento foi prescrito novamente o antidepressivo. Quando indagada sobre o agendamento com o psicólogo e o psiquiatra, referiu que o psicólogo já estava agendado, porém, disse que achava melhor inicialmente não agendar com o psiquiatra, queria esperar mais um pouco para ver se realmente havia necessidade de acompanhamento com o mesmo. Foi observado neste momento uma certa hostilidade em relação ao profissional psiquiatra. Avaliei que seria melhor não contrariar a paciente e ficou acordado que retomaríamos à conversa sobre esta demanda na próxima consulta. Ficou decidido entre as partes (médico e paciente) que a partir de então, ela viria à consulta, 1x por semana nos próximos 30 (trinta) dias ou com intervalo mais breve em caso de necessidade sem agendamento prévio e as consultas posteriores seriam realizadas em comum acordo entre médico e paciente. Na terceira consulta, após ter reiniciado o medicamento compareceu à consulta sozinha referindo-se bem disposta e que havia voltado a dormir normalmente há 72 horas. Estava animada, mas, sem exageros, referindo que iria fazer parte de um trabalho de evangelização com crianças da sua igreja e que seria realizado uma vez na semana, em sua própria residência o que, já estava sendo organizado pela própria e outros membros. Ainda, no final da semana o seu núcleo familiar iria se reunir com outra parte de sua família para lazer. Nesta terceira consulta houve referência da paciente que há 1 ano havia sido encaminhada ao CAPS III, onde foi realizado o acolhimento inicial e em seguida foi atendia por médico psiquiatra, que após consultas e constatação que a mesma não era portadora de transtorno mental grave, foi orientada que procurasse a UBS para dar continuidade ao seu acompanhamento que é o que está acontecendo atualmente.
No Município de Macapá/AP o CAPS III e o CAPS-AD funcionam sob a coordenação do Estado, já o CAPS I e o Consultório na Rua (todos os programas, incluindo saúde mental), funcionam sob coordenação da Prefeitura. Em visita que realizei ao CAPS III, conversei com a coordenadora que referiu que o serviço não funciona realmente como deveria porque embora atenda pacientes com transtornos mentais graves, também atende pacientes com depressão, os quais, na realidade deveriam estar sendo atendidos na UBS. O horário de funcionamento é insuficiente apenas 12 horas (8:00 às 20:00hs), e ainda não estão habilitados perante o Ministério da Saúde (MS), foi informado está em fase de documentação. O serviço conta com 3.000 usuários cadastrados, existem oficinas diariamente específicas para cada tipo de transtorno mental, 2 leitos para os que necessitam fazer medicamentos, equipe multiprofissional composta por técnicos de enfermagem, Assistentes Sociais, Psicólogas e Psiquiatras (dois). Os pacientes que ficam 6 horas recebem duas refeições e 1 lanche. A demanda chega até o serviço através de encaminhamentos de outros serviços ou por demanda espontânea. É realizado o acolhimento e encaminhados para avaliação psiquiátrica para que haja a determinação se o usuário é realmente portador de transtorno mental grave.
Na visita ao CAPSI, fui recebida pelo psicólogo que atua no serviço, referindo ser a demanda de caráter espontâneo ou através de encaminhamentos da UBS ou da justiça, em se tratando de menor infrator. O menor faz um acolhimento com um membro da equipe multiprofissional rotativamente composta pelo psicólogo, terapeuta ocupacional, assistente social, educador social, enfermeira, farmacêutico e o médico psiquiatra. São oferecidos lanches de acordo com a necessidade do tempo de permanência do usuário. O atendimento de usuários residentes de outro município é realizado em conjunto com o psicólogo da localidade através de referência e contra referência. Não há leitos e em caso de urgência o usuário é encaminhado ao Pronto Atendimento Infantil (PAI). Existem atualmente 4.541 usuários cadastrados com período de funcionamento de 8 horas por dia de segunda a sexta-feira. O NASF funciona rotativamente em relação às UBS de nosso município e na minha unidade ocorre toda quinta-feira. Nos intervalos são agendadas as demandas pelas ESF identificadas pelos membros da equipe e o usuário é encaminhado à sala de Educação em Saúde da UBS para que seja feito seu agendamento. O atendimento é registrado em prontuário único do usuário.
Referências
CORREIA, V. R.; BARROS, S.; COLVERO, L. A.; Saúde Mental na Atenção Básica: Prática da Equipe de saúde da Família. Rev. Esc. Enferm USP, 2011; 45 (6): 1501 – 6;
MOLINER, J.; LOPES, S. M. B.; Saúde Mental na Atenção Básica: Possibilidades para uma Prática Voltada para a Ampliação e Integralidade da Saúde Mental. Saúde Soc. São Paulo, v. 22, n. 4, p. 1072 – 1083, 2013;
POÇO, J. L. C.; A Inserção da Saúde Mental na atenção Primária à Saúde em um Sistema de referência e contra – referência – O Caso da UBS Paulo Roberto Spawen – SUS/Juiz de Fora, 2005.
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