9 de outubro de 2018 / SEM COMENTÁRIOS / CATEGORIA: Relatos

CAPÍTULO IV: O desafio de trabalhar a saúde mental em uma rede fragmentada

Especializando: André Martins Ornelas

Orientador: Maria Helena Pires Araújo Barbosa

A prevalência de transtornos mentais na população é elevada. Cerca de 3% da população brasileira apresenta algum transtorno mental severo e persistente. Esses problemas acarretam prejuízo à qualidade de vida dos indivíduos e podem levar à incapacidade de longa duração (SANTOS, 2010). Para responder de forma efetiva às necessidades em saúde mental, a Estratégia de Saúda da Família (ESF) deve estar capacitada e organizada para prover um cuidado integral ao indivíduo, trabalhando de forma articulada com os demais pontos da rede de saúde mental.

            O cuidado em saúde mental é um desafio para as equipes de saúde da família! Muitas vezes, estamos completamente despreparados para prover a melhor assistência a esses usuários, seja por preconceito, despreparo técnico, limitado tempo de consulta ou até “falta de paciência”. Como consequência, assistimos a um crescimento exorbitante de usuários dependentes de psicotrópicos!

            As ações desempenhadas por nossa equipe no campo da saúde mental são tímidas! A maioria dos indivíduos em sofrimento psíquico procuram a UBS principalmente para renovar receita de psicotrópicos. Muitos são usuários crônicos que creditam ao medicamento a única possibilidade de alívio para suas angústias. Atualmente, o usuário de psicotrópicos é sempre avaliado pelo médico toda vez que necessita renovar sua receita. Nessa consulta, busca-se avaliar o grau de controle da comorbidade, a adesão ao tratamento não farmacológico e a possibilidade de desmame dos medicamentos. Antes de iniciar as atividades na equipe, o usuário tinha sua receita transcrita pela enfermagem e carimbada pelo médico sem nenhuma avaliação! Essa estratégia foi adotada ao longo de muitos anos para “ampliar” o número de vagas de atendimento e “desafogar” o trabalho do profissional médico. Muitos indivíduos ficavam anos sem retornar ao especialista para reavaliação, pois acreditavam que tais medicamentos seriam para toda vida!      

            Um novo olhar sobre a saúde mental vem se desenvolvendo a cada dia em nossa equipe. Diante da necessidade de melhorar a assistência nesse cenário, estamos priorizando o atendimento do usuário em sofrimento psíquico, da mesma forma que priorizamos a atenção às gestantes, diabéticos e hipertensos. Reservamos diariamente vagas para esse grupo de indivíduos, seja como demanda livre ou como demanda programada. Preferimos não “rotular” o atendimento ao portador de transtorno mental com denominações como “Dia da Saúde Mental”, pois entendemos que essas terminologias são estigmatizantes e podem afastar os usuários por medo de discursos preconceituosos, da mesma forma que acontece entre os usuários do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) que são vistos (e discriminados) pela comunidade como “loucos”. Também preferimos não estabelecer agendas rígidas para o usuário em sofrimento psíquico, pois acreditamos que uma descompensação emocional pode ocorrer a qualquer hora e em qualquer dia da semana. Negar o atendimento nesse momento oportuno, por não ser o dia específico daquele tipo de consulta, pode levar a mais sofrimento emocional e quebra do vínculo usuário – ESF.

Os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) são elementos estratégicos para melhoria da assistência em saúde mental. Esses profissionais podem contribuir com a identificação na sua microárea de indivíduos em sofrimento psíquico que muitas vezes não buscam atendimento por preconceito ou desconhecimento da doença. Realizar essa captação de forma precoce pode oportunizar melhores resultados terapêuticos. Os ACS também foram orientados a identificar e registrar os usuários crônicos de psicotrópicos, para um melhor controle do uso desses medicamentos na comunidade. 

Para compreender melhor a rede de saúde mental do município e criar estratégias de integração entre os serviços, a equipe realizou uma reunião junto à direção do CAPS e com a psicóloga do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF – AB).

            A rede de saúde mental de Macau/RN é construída a partir das Unidades Básicas de Saúde (UBS) com o apoio do NASF – AB, ambulatórios de psiquiatria e psicologia e pelo Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD). A rede parece fragmentada, com cada elemento trabalhando de forma individualizada e desarticulada.

A única psicóloga do NASF – AB, responsável por várias equipes da cidade, não consegue responder à demanda por tratamento psicoterápico, de forma que inúmeros indivíduos não têm o devido atendimento e acabam por recorrer ao uso de psicotrópicos, muitos tornando-se dependentes desses. O NASF – AB, superlotado com uma rotina de atendimentos individuais, acaba por não fornecer o devido apoio “pedagógico” à equipe na construção de projetos terapêuticos singulares ou trabalhos em grupo.

Os usuários com transtornos mentais moderados/graves identificados pela ESF são encaminhados aos serviços especializados (ambulatórios ou CAPS), mantendo-se o vínculo com a UBS para um cuidado compartilhado. Porém muitos usuários não conseguem atendimento nesses locais, devido à superlotação dos serviços. Além disso, a contrarreferência muitas vezes não é respondida, criando uma verdadeira lacuna de informações importantes para o acompanhamento do indivíduo: até quando ele deverá usar a medicação? Quando deve retornar ao especialista? Qual seu diagnóstico?

Para exemplificar o cuidado em saúde mental provido por nossa equipe, cita-se o caso de uma mulher de 65 anos, aposentada, acamada há cerca de 1 ano devido à sequela de Acidente Vascular Encefálico, que vinha apresentando sintomas depressivos nos últimos meses, como tristeza, choro fácil, anedonia, tendência ao isolamento social, além de sonolência excessiva e diminuição do apetite. O ACS, ao identificar a situação da idosa, agendou de imediato uma visita domiciliar. A avaliação médica definiu o diagnóstico de depressão maior, sendo iniciado tratamento medicamentoso e agendado visita domiciliar da psicóloga do NASF – AB. Infelizmente, o tratamento psicoterápico não foi iniciado até o presente momento, pois a agenda da psicóloga está lotada, além da dificuldade logística de transportar a profissional para consultas no domicílio. A usuária segue em acompanhamento com a equipe, apresentando melhora parcial do quadro, o que motivou encaminhamento para avaliação especializada no ambulatório de psiquiatria.

Pode-se observar que a superlotação dos serviços e a falta de articulação entre a ESF e os demais pontos da rede de saúde mental contribuem para um cuidado fragmentado, sob risco de não produzir transformações efetivas na vida do usuário e na superação da doença. Para mudar esse cenário é necessário, acima de tudo, vontade política em promover uma melhor integração entre os serviços de saúde mental do município.

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